O século XXI vem despontando como um período no qual o conservadorismo e o debate anti-gênero ganham proporções inimagináveis, alimentando discursos que oprimem, apagam, silenciam, violentam e matam quem habita o feminino. Isso, no que tange a América Latina, ainda é atravessado pela colonialidade de gênero (Lugones, 2020) que potencializa o pensamento Red Pill, Incel, Sigma e Masculinista, subculturas da machosfera que vem se configurando naquilo que Rita Segato (2018) chama de pedagogias da crueldade, um conjunto de atos e práticas que ensinam, habituam e programam os sujeitos a transmutar “o vivo”, isto é, tudo aquilo que flui errante e imprevisível na sua vitalidade em coisa, em inimigo que precisa ser aniquilado, em corpos-coisa de mulheres. Uma lógica que coloca as mulheridades em um alto grau de vulnerabilidade e de precarização da vida. As relações de gênero e o patriarcado, por sua vez, desempenham um papel relevante como cenário prototípico dessa época. A masculinidade está mais aberta à crueldade porque a socialização e o treinamento de vida do sujeito que deve carregar o fardo da masculinidade o forçam a desenvolver uma afinidade significativa entre masculinidade e guerra, entre masculinidade e crueldade, entre masculinidade e distanciamento, entre masculinidade e baixa empatia. As mulheres são empurradas para o papel de objetos, descartáveis e disponíveis, à medida que a organização corporativa da masculinidade leva os homens à obediência incondicional aos seus pares — e também opressores — e encontra nelas as vítimas prontas para abrir caminho rumo a exemplar cadeia de comando e expropriação. Diante do exposto, o que significa para as mulheres latino-americanas escreverem nesse contexto? Ou como propõe Rivera Garza (2024, p. 23), “quais são os desafios que o exercício da escrita enfrenta em um meio onde a precariedade do trabalho e a morte são a matéria-prima do dia a dia? Se a escrita pretende ser crítica do estado de coisas, como é possível, através da escrita, desmantelar a gramática de poder predatório do neoliberalismo exacerbado e suas mortais máquinas de guerra?”. Por isso, parafraseando Audre Lorde (2019), para nós, que habitamos as mulheridades, a literatura não é um luxo, pois a escrita emerge tanto como um ato de reconstrução, de recuperação de si; quanto como um ato de resistência coletiva, um modo de fraturar a estratégia colonial de nos encerrar como um outro, visto apenas da perspectiva do homem, branco, cishétero, cristão, moderno-colonial, de classe média e capacitista. Escrever, defende val flores (2022, p. 05), “é um gesto de astúcia, insolência e contágio” que se consolida como ato de luta e estratégia de fuga ao nos permitir estabelecer regimes outros de inteligibilidade, falabilidade e escuta política. Escrever, continua, “é um modo de se situar em um espaço de cinzas, ali onde poesia, teoria e prática se dissolvem e pulverizam como uma sedutora provocação a praticar um pensamento fronteiriço, promíscuo, poroso” que se edifica em um texto que politiza o EU ou que me narra ao “apropriar-se das experiências e vozes dos outros em benefício próprio e de suas próprias hierarquias de influências” (Garza, 2024, p. 110). A escrita é ato que convoca nossas corporalidades – mulheres cis, trans, negras, indígenas, PCDs – a catar os cacos da vida para remontar a si em inteireza, pois ser em inteireza é mover-se pela atividade, pela agência criativa do ser-sendo em comunalidade. Eis as reflexões que movem este simpósio que procura reunir pesquisadoras, pesquisadories e pesquisadores para pensar como as escritoras latino-americanas, ao acionar transescritas, necroescritas, escrevivências, escritas de si, o horror gótico, dentre outros procedimentos, constroem não só realidades que dão conta de novas formas de resistências; mas também práticas críticas, indóceis, transgressoras capazes de desmantelar a gramática de poder e construir contra-pedagogias da crueldade, pois, como diz Anzaldúa (2021, p. 58), “é na escrita mesma que nossa sobrevivência se encontra, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida”.
Coordenadores: MANUELA RODRIGUES SANTOS, JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS, KÉSIA DOS ANJOS ROCHA.